Com a publicação da Portaria RFB/SPA/MF nº 3/2025, uma nova dúvida surgiu para todos que acompanham atentamente o mercado de apostas e jogos on-line. O documento, feito em conjunto pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF) e a Receita Federal estabelece a criação do Grupo de Trabalho Intersecretarial (GTI), intitulado GTI-Bets, que tem como objetivo acompanhar o comportamento do setor de jogos on-line e apostas esportivas em relação à regularidade fiscal e manutenção dos requisitos para a autorização das pessoas jurídicas autorizadas.
O GTI também busca subsidiar a identificação de possíveis atuações ilegais de empresas não autorizadas a operar no Brasil, as quais podem estar envolvidas em lavagem de dinheiro e outros delitos.
O ponto que levantou maiores dúvidas, no entanto, pode ser encontrado no inciso II do Art. 1º. Ele afirma que o GTI tem, como uma de suas atribuições, “subsidiar proposta de programa de conformidade para regularização de obrigações tributárias em relação a período pretérito à autorização, para as pessoas jurídicas autorizadas”.
Com isso, surge a dúvida: serão cobrados impostos retroativos de operadores licenciados no Brasil? Para entender mais sobre o assunto, o SBC Notícias Brasil conversou com Filipe Rodrigues, advogado e CEO do Jogo Positivo, e Andréa Ueda, advogada associada da AMIG.
“O artigo 1º, inciso II, da portaria conjunta não informa se as obrigações tributárias em relação ao período pretérito à autorização são principais ou acessórias. Enquanto a obrigação principal está relacionada diretamente ao pagamento de imposto, a obrigação acessória está voltada para as ações e procedimentos que garantem a correta apuração, fiscalização e controle de impostos”, afirmou Rodrigues.
“Data vênia outra opinião, entendo que não incide obrigação tributária principal pretérita. Isso seria um abuso do poder estatal. O princípio da legalidade tributária estabelece um limite ao poder de tributar do Estado, garantindo que a cobrança de tributos só possa ser feita quando houver previsão legal expressa para tanto. Isso significa que nenhum tributo pode ser exigido sem que haja uma lei que o institua. Além disso, a lei que institui o tributo deve ser clara e precisa, de modo a garantir a segurança jurídica e a previsibilidade das obrigações tributárias”, seguiu o CEO do Jogo Positivo.
“Ou seja, a finalidade do princípio da legalidade tributária é assegurar a justiça fiscal e a proteção dos direitos fundamentais do contribuinte, ao mesmo tempo em que permite ao Estado arrecadar os recursos necessários para o cumprimento de suas funções e responsabilidades. Deste modo, qualquer cobrança tributária anterior ao período de autorização seria arbitrária e ilegal. O particular não pode ser punido pela omissão estatal dos últimos 6 anos”, concluiu Rodrigues.
Para Ueda, “o inciso II do art. 1º da Portaria Conjunta RFB/SPA nº 3, de 06.01.2025 tem objetivo expresso de permitir que o Grupo de Trabalho Intersecretarial – GTI-Bets apresente uma proposição que vise a ‘regularizar obrigações tributárias pretéritas’ das atuais operadoras autorizadas a prestar serviços de loteria de apostas de quota fixa. Assim, a primeira leitura é de que a intenção é, fazendo esse estudo, apresentar uma proposta embasada sobre se e o que deveria ter sido recolhido, sob o aspecto fiscal, durante o período em que as atuais operadoras autorizadas estavam a operar para o Brasil, por meio de plataformas que forneciam apostas esportivas e em jogos online aos consumidores brasileiros, antes de obterem as devidas autorizações emitidas no final de 2024”.
“Não posso afirmar que essa intenção (de estudar esse passado, mapear a conformidade fiscal e apresentar uma proposição textual) seja uma surpresa, ao menos para as operadoras que participavam de conversas com os membros do Ministério da Fazenda, já desde os idos de início de 2023, antes mesmo de existir a Secretaria de Prêmios e Apostas, pois esse tema já havia sido aventado em reuniões presenciais com membros de associações, e, mais do que isso, já foi tema de apontamentos de políticos quer na própria CPI da Câmara de 2023, quer nas discussões para aprovação da Lei nº 14.790/2023”, seguiu Ueda.
“Mas, partindo dessas premissas de estudos e desejos ou intenções regulatórias tributárias (que não são, per se, indevidas) para se dizer simplesmente que é factível uma cobrança de possíveis tributos, de forma pretérita, abre-se um enorme fosso, onde destaco o arsenal principiológico de Direito Constitucional e Tributário, que deve ser bem mapeado e estudado, versus os fatos e atividades que ocorreram preteritamente, pelo simples fato que, como qualquer estudante de Direito sabe, existem questões mínimas prescricionais, de existência legal da base de cálculo na época dos fatos e legitimidade ativa e passiva, que, por certo, é o que será pauta desse GTI para fins do dispositivo questionado”.
“Não sou tributarista e, por certo, sei que existem inúmeras opiniões legais sobre o tema já elaboradas há tempos sobre isso, mas como cidadã, o que mais importa nesse tema é que haja a transparência desses estudos, a possibilidade de discussões com as operadoras autorizadas e, acima de tudo, o respeito aos arcabouços legais e regulatórios existentes na época, para que mantenhamos a segurança jurídica que é para proteção da sociedade e do Estado de Direito”, concluiu a advogada associada da AMIG.
O GTI-Bets terá duração de seis meses, que podem ser prorrogáveis por decisão dos secretários. Serão apresentados relatórios bimestrais às Secretarias, além do relatório conclusivo ao final dos trabalhos.
STF determinou pagamento retroativo de impostos em casos de revisão de decisões tributárias
Em abril de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento de recursos contra uma decisão da Corte, que autorizou a revisão de decisões judiciais sobre o pagamento de tributos. Nele, foi mantida a decisão, incluindo a possibilidade de cobrança retroativa. No entanto, empresas enquadradas no caso não precisarão pagar multas pois, segundo tributaristas, a conta em impostos a pagar é bilionária e incalculável, já que a decisão pode ser extrapolada para diversas situações.
De acordo com Rodrigues, “o tema é extremamente polêmico considerando a decisão de abril do ano passado. No caso concreto decidido em abril de 2024, se discutia sobre a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), e os ministros entenderam que a cobrança deve retroagir até 2007, data em que o Supremo considerou o tributo constitucional. Os contribuintes pleiteavam a modulação dos efeitos para não permitir que a decisão tivesse efeitos no passado. Assim, não houve modulação dos efeitos e houve a quebra da coisa julgada”.
“No caso em tela, a situação é diferente. Não existia fato gerador para as atividades de apostas online. De 2018 a 2023 simplesmente não se sabia quanto o contribuinte iria pagar de impostos. Outro entendimento ao meu ver seria inconstitucional. Violaria o princípio da legalidade tributária insculpido na Constituição, no artigo 150, I. Dessa forma, qualquer entendimento contrário geraria surpresa fiscal e risco sistêmico absurdo”, concluiu Rodrigues.
Para Ueda, o que tem sido visto em discussões é que esse dispositivo da portaria conjunta visará, “por certo, olhar para o bolso dos apostadores, ou seja, buscará a tributação pelo Imposto de renda sobre os ganhos dos apostadores nas casas de apostas que operavam no ou para o Brasil, antes das autorizações emitidas, o que será facilitado ante as migrações operacionalizadas com base na Portaria SPA 1857/2024”.